Como o altruísmo de um homem mudou vida de vila onde um quarto da população tem deficiência
Em uma vila remota da Indonésia, um em cada quatro moradores tem deficiências físicas e cognitivas – um número alto e incomum. Por muitos anos, essas pessoas não tiveram a assistência necessária, mas um homem transformou suas vidas.
Na entrada do empoeirado vilarejo de Karangpatihan, um cartaz com a imagem de Eko Mulyadi pode ser visto entre duas árvores. Mulyadi, para sua própria surpresa, foi eleito líder da vila no ano passado.
“Nunca quis ser o chefe da vila, nunca foi minha ambição. Mas uma noite um jovem veio até minha casa bem tarde. Ele me acordou e me levou a um quarto onde todos os moradores se reuniam. Cerca de 90 pessoas, jovens e idosos, me disseram: ‘Queremos que seja nosso líder.'”
Hoje a casa de Mulyadi é um lugar onde qualquer pessoa pode passar o tempo, sobretudo aquelas com deficiências físicas e de aprendizagem.
A causa tem uma grande área externa coberta no térreo, onde a mulher de Mulyadi, Yuliana, está sentada com a filha de nove anos do casal e sua bebê recém-nascida.
Eles acabaram de descascar uma safra nova de amendoins. Galinhas circulam bicando as cascas e o som das duas cabras da família pode ser ouvido pela casa.
Sentado nos degraus está Duey, um homem magro de meia-idade que não consegue falar. Ele é um frequentador da casa, e aparece quase todo dia para se sentar com Yuliana e as filhas.
Apesar do calor intenso, Duey veste duas camisas e três pares de shorts, todos rasgados. Ele puxa seus shorts e gesticula, tentando comunicar algo por meio de sons guturais curtos.
Mulyadi aparece para cumprimentar Duey e eles começam uma conversa extraordinária, que lembra uma dança. Mulyadi usa o rosto, as mãos e todo o corpo para se comunicar.
“Ele está dizendo que tem muitas roupas em casa, mas nenhuma calça”, diz Mulyadi, sorrindo.
Descendo a rua, Bagus Waras está catando lixo. Ele nasceu com hidrocefalia, problema em que o acúmulo de líquido cefalorraquídeo causa inchamento do cérebro. Ele tem 30 anos, mas a idade mental de uma criança.
Quando a repórter pergunta o que ele está fazendo, ele responde timidamente: “Por favor senhorita, tenho apenas cinco anos. Estou indo agora, vou para a escola.”
Duey e Bagus são dois entre 30 moradores da cidade que nasceram com algum tipo de deficiência – somando um quarto da população da vila, de 120 pessoas.
Estatísticas fora da curva
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), defeitos congênitos atingem cerca de 6% dos nascimentos, o que coloca Karangpatihan quatro vezes acima da média mundial.
E não é apenas Karangpatihan. Em outras regiões do distrito de Ponorogo, como Sidowayah e Pandak, a história é parecida. O primeiro problema veio a público há cerca de 60 anos.
“A maioria das pessoas com deficiências físicas e de aprendizagem nasceu nos anos 1950”, diz Mulyadi. “Não havia médicos aqui naquela época, e a vila era muito pobre. Os moradores só começaram a perceber que seus filhos não eram como as outras crianças quando eles atingiam quatro, cinco anos.
“Eles imaginavam por que elas não conseguiam falar, por que não se desenvolviam como outras crianças. Não havia ajuda, então não havia escolas para crianças com necessidades especiais, postos de saúde ou médicos. Então essas crianças se tornaram párias.”
Embora Mulyadi tenha crescido em meio a vizinhos com filhos com deficiências, ele só foi entender como a vida era para essas pessoas quando seu pai, um fazendeiro, se ofereceu para cuidar de uma criança com deficiência grave.
“Eu tinha apenas quatro anos quando ele veio morar conosco, mas instintivamente me senti muito triste por ele. Eu era uma das poucas crianças da vila a frequentar a escola, e esse menino costumava me acompanhar. Ele não falava, mas eu pude conhecê-lo e entendê-lo muito bem. Ele se tornou meu amigo. Foi quando notei todas as pessoas da vila que eram como ele”, diz Mulyadi.
“Eles eram ignorados por suas famílias, simplesmente porque elas não sabiam o que fazer com eles. Elas os alimentavam, mas de resto os ignoravam e os deixavam à própria sorte.”
À medida que crescia, Mulyadi passou a se preocupar mais com a situação.
“Outros moradores apenas pensavam que eram pessoas estúpidas, até loucas. Sempre me preocupei com elas. Eram tão pobres, e não acho que fosem felizes. Não posso dizer como se sentiam, mas acho que sofriam muito. Suas vidas eram tão difíceis. Estava preocupado sobre o futuro delas depois que seus pais morressem – quem cuidaria delas?Com quem viveriam?”
Causa invisível
Mulyadi foi o único adolescente da vila a completar a escola e ir à universidade. Quando voltou, se sentiu com a responsabilidade de fazer algo a respeito.
No começo, ele doou alimentos e dinheiro de seus próprios ganhos, mas logo percebeu que isso não mudaria a vida das pessoas de forma significativa. Então ele começou a se inscrever para tentar obter recursos do governo, mas nada foi para a frente. “Parecia que minha causa era invisível”, conta.
Ele então recorreu a um jornalista local e o pediu que visitasse a vila para uma reportagem.
Quando a matéria foi publicada, Karangpatihan recebeu o nome da “Vila dos Idiotas”. Mulyadi ficou arrasado. A última coisa que queria era que o local fosse ridicularizado. “Mas algo inesperado aconteceu”, ele diz. “A reportagem fez muitas pessoas se questionarem sobre os motivos de uma concentração tão alta de defeitos congênitos nas vilas em torno de Ponorogo.”
Possíveis explicações
Havia muitas teorias. Alguns diziam que o isolamento dessas vilas montanhosas havia motivado décadas de endogamia (casamento entre pessoas do mesmo grupo social). Outros culpavam uma infestação de ratos que afetou Karangpatihan e Pandak entre 1963 e 1967, destruindo plantações.
As causas mais prováveis, diz Mulyadi, são pobreza e desnutrição. “Não há um estudo oficial, mas acredito fortemente – e as pessoas aqui também – que as deficiências tenham sido causadas por dietas pobres durante a gravidez.”
Escasez de alimentos é um problema grave na região. As encostas de pedra calcária seca dificultam o cultivo de subsistência, e a localização remota reduz as oportunidades de ganhar dinheiro suficiente para comprar comida. Quase 70 das famílias vivem abaixo da linha de pobreza.
A maioria depende de uma dieta de arroz e mandioca, conhecida localmente como nasi tiwul. Mas certas substâncias na mandioca podem inibir a absorção de iodo, o que pode levar a defeitos congênitos.
Mão na massa
Envolvimento de moradores com deficiências na construção civil é uma das alternativas sociais para a vila
Outros moradores manifestaram ceticismo em relação à iniciativa. “Algumas pessoas pensaram que eu estava louco, estavam realmente contra a ideia. Diziam que era impossível.”
E, de fato, não foi fácil.
“Eu as ensino a desempenhar tarefas simples em construções – principalmente por meio da linguagem de sinais. Treinar pessoas com deficiências é difícil, leva tempo. O maior desafio é encontrar uma forma de comunicação, que quase sempre se dá pelas expressões faciais, sinais e uso do corpo.”
O resultado foi impressionante, e mudou as atitudes na vila, diz o líder. “Eles acabaram construindo toda uma nova infraestrutura – estradas, pontes e casas. Até erguemos uma escola.”
Novas iniciativas
Depois do programa de construção, Mulyadi começou outros projetos, porque àquela altura ele já tinha a atenção necessária para captar recursos. Em 2010, com dinheiro do Banco da Indonésia, ele construiu lagos de pesca para cada uma das famílias com crianças especiais, para que pudessem ter alguma renda. Hoje há 57 fazendas de pesca em Karangpatihan.
Uma dessas famílias vivia perto de Mulyadi. Enquanto a reportagem sobe a única rua da vila para encontrá-la, é possível ouvir os sons de uma cerimônia de casamento.
Várias pessoas com deficiências se casaram e tiveram filhos. Nuomo é um deles. Ele não tem deficiências, mas seus pais não conseguem falar. Ele aprendeu a se comunicar conversando com a avó.
“Eu me comunico com minha mãe por sinais, mas pode ser difícil. Não a entendo sempre”, diz, antes de se juntar a amigos em brincadeiras no rio.
Perto da antiga casa de Mulyadi, dois homens em torno dos 40 anos, Dipon e Jamun, fumam cigarros artesanais. Irmãos, eles não conseguem falar. Eles sorriem e acenam. A mãe, Sipon, com cerca de 70 anos, aparece.
O marido de Sipon morreu há alguns anos, e ela recorreu a Mulyadi em busca de ajuda para sustentar os dois filhos adultos. Mulyadi construiu um lago e ensinou Jamun a pescar, e deu duas cabras e dez galinhas a Dipon.
Além disso, todo domingo Dipon e Jamun se juntam a outros moradores para tecer capachos, outra iniciativa de geração de renda organizada por Mulyadi para ajudar os moradores com deficiências.
Desafios
Mas Mulyadi não consegue ajudar a todos. Nos limites da vila, após um rio, vive Campret, de 39 anos. Para chegar até ele, é preciso subir um morro e atravessar uma vegetação densa.
Ao chegar, a reportagem ouve gemidos e encontra uma imagem perturbadora. Campret está deitado no chão de concreto. Está muito magro e sujo, e tomado por feridas que parecem inflamadas. Seu pai, sentado logo atrás dele, é cego.
Quando vê a reportagem, ele começa a chorar, fazendo sons estridentes. Sua mãe, idosa, tenta acalmá-lo.
A reportagem pergunta o motivo de ele estar deitado no chão sujo. A mãe diz que dá banho no filho todo dia, e que ele tem uma cama, que não usa.
Sobre as feridas, a mãe diz que o levou ao médico quando ele era criança e, depois, na adolescência. “Ele ficou muito nervoso todas essas vezes. Ficou furioso. Ele tentou fugir, e desde então não o levei mais.”
Campret costuma fugir, diz Mulyadi. “Ele é conhecido por vagar por outras vilas e ficar desaparecido por dias. Às vezes a situação fica tão grave que seus pais precisam amarrá-lo”, diz, mostrando a corda fina usada nessas situações. Segundo a mãe, a última vez que ela precisou de usar a corda foi há mais de um ano.
O rapaz não vai ao médico há 20 anos, e sua necessidade de assistência é clara.
A reportagem questiona Mulyadi o motivo de ninguém ter ajudado a família. “Nós não vemos necessidade de um médico porque fisicamente ele está bem”, responde. A repórter Candida Beveridge discorda e diz que ele precisa de ajuda.
“Nós na verdade não sabemos o que fazer”, reconhece Mulyadi. “Não temos um especialista que possa ajudá-lo. A única coisa que posso fazer é dar alimentos e dinheiro. Não posso envolvê-lo em meus cursos porque ele não compreende. É um caso trágico”, afirma, impotente.
A repórter insiste na necessidade de encontrar um médico apropriado para avaliar o rapaz.
Casos como o de Campret deixaram Malyadi mais atento para ações de prevenção. Por isso, ele passou a monitorar pessoalmente toda gravidez na vila, incentivando uma dieta saudável, com vegetais variados.
E para quem não consegue se deslocar até o hospital local, a 45 minutos, nem bancar um raio-X, ele oferece transporte em seu próprio carro – e paga os exames.
Ele diz esperar que um dia os moradores com deficiências consigam se sustentar sozinhos. Voltando para casa, para cuidar de seu próprio bebê e dos amendoins, ele lembra como as coisas costumavam ser. “No passado, você quase sempre encontrava pessoas com deficiência sentadas na estrada fazendo nada. Isso é raro agora. Nossa vila é um lugar muito diferente agora.”
Um lugar, afirma, do qual suas filhas podem se orgulhar.
Depois que a reportagem colocou Karangpatihan no mapa, as coisas começaram a mudar. O governo financiou um projeto de construções na vila.
Mulyadi viu ali uma oportunidade de fazer a diferença. “Queria fazer algo por essas pessoas. Precisava mostrar que me preocupava, para dar um exemplo. Queria provar que são capazes, que podem ser úteis e criativas. Queria que fosem tratadas como iguais. Acho que mereciam isso.”
Então ele começou a envolver essas pessoas na construção civil. “Pedi a todos que tinham força física que viessem trabalhar.”
Fonte: http://www.bbc.com/