É só flexionar o joelho para o degrau ser transposto. Basta desviar, passar pela grama, e o buraco na calçada já ficou para trás. Movimentos simples e rotineiros, mas apenas para quem não tem nenhuma deficiência física. Cientes das dificuldades enfrentadas por pessoas como Cristian Ricardo Ferreira e Ana Flávia de Jesus – que têm restrições na locomoção – estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo denunciam a falta de acessibilidade arquitetônica em áreas do campus de Goiabeiras, em Vitória.
A temida concorrência do curso de Direito não foi o único obstáculo enfrentado por Cristian, que se locomove com dificuldade, e Ana Flávia, que usa cadeira de rodas, para que eles pudessem entrar na Universidade. Aliás, foi apenas o primeiro. Deficientes físicos, eles são alguns dos prejudicados pela ausência de materiais e elementos que facilitem a locomoção pela Ufes.
A começar, o prédio onde são ministradas as aulas do curso, o ED-V, no Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE), está totalmente fora do padrão de acessibilidade. Um relatório formulado por uma arquiteta em fevereiro deste ano constatou a elevada inclinação da rampa de acesso ao prédio, que tem cerca de 12% de inclinação, enquanto o recomendado é de 8,33%.
Ainda de acordo com o relatório, no banheiro não há espaço suficiente para manobra na cadeira de rodas e os lavatórios não atendem à altura recomendada pela norma.
O acesso ao andar superior ocorre exclusivamente por escadas, mas, segundo o relatório, há um estudo em andamento para instalação de plataforma, elevatória. Das quatro salas de aula existentes no térreo, apenas uma é inacessível para pessoas com deficiência física.
Além disso, o relatório apontou que os bebedouros e o balcão de atendimento também estão fora do recomendado pela Lei de Acessibilidade.
Por conta desses impasses, a turma do 1º período, a qual Ana Flávia pertence, precisou ser transferida para outro prédio, o ED-VII, onde há rampa e elevador, para que ela pudesse se locomover com a cadeira de rodas. A acomodação no novo prédio, segundo os estudantes, distancia a turma do 1º período das demais, dificultando a interação dos calouros com os veteranos.
“Quando passei no vestibular, eu ainda não tinha uma noção real do problema. E aí algumas pessoas vieram falar comigo que iam tentar fazer com que a gente fosse para outro prédio, o ED-VII. Só que esse prédio é oficialmente das Ciências Contábeis, então viemos para cá, que é onde oferecia uma melhor acomodação”, contou Ana Flávia.
Mas as falhas não estão apenas no interior dos edifícios. Alguns trajetos do prédio até outras áreas da instituição também são problemáticos.
Com ajuda de outra pessoa, Ana Flávia até consegue subir e descer as rampas ou vencer os pequenos degraus que existem na entrada do Restaurante Universitário, por exemplo. Entretanto, a jovem luta pela própria independência. “Nem sempre têm pessoas disponíveis para ajudar. Se a gente pudesse fazer todas as coisas com uma maior independência, seria perfeito”, contou.
A situação chamou a atenção dos estudantes da turma dela, que se organizaram e criaram o “Acesso”, uma página no Facebook onde eles expõem os problemas de acessibilidade presenciados no campus. A página já foi curtida por mais de 1.700 usuários da rede.
“A gente começou a ver que a situação ia muito além da Flávia. Então começamos a nos organizar como grupo, fizemos reuniões e planejamentos e nossa luta passou a ser pela acessibilidade”, contou Alexia Trancoso, uma das organizadoras do “Acesso”.
Além da criação da página, os alunos providenciaram um abaixo-assinado e enviaram uma carta ao reitor da Universidade, Reinaldo Centoducatte. “[…] não queremos mais aceitar inertes a irresponsabilidade da Universidade e ficar à mercê da ausência de legalidade. Não queremos tratar de maneira pessoal, privada, problemas que são públicos”, diz um trecho da carta.
Mas essa luta em prol de uma Universidade mais acessível e democrática já havia começado anos antes, em 2012, quando Cristian Ricardo Ferreira ingressou no curso. Ele tem um tipo de reumatismo que impede que as pernas se flexionem. O jovem não precisa usar cadeira de rodas, mas anda com dificuldade e, às vezes, até mesmo as rampas são um obstáculo.
“Logo que entrei, já comuniquei à Ufes que eu demandava condições especiais de acessibilidade e estrutura. De lá para cá, venho mandando e-mails e ofícios para a Prefeitura Universitária, para a Ouvidoria, para o Departamento de Direito, e nada vem sendo executado. No início de 2013, entrei com uma reclamação na Ouvidoria, e a única solução até hoje foi pintar a vaga para deficientes e tirar a vaga que fica em frente à rampa, nada mais foi feito”, lamentou.
No caso dele, a turma não precisou mudar de prédio, mas todas as aulas e atividades de Cristian precisaram ser feitas no primeiro andar do edifício. “Estou há três anos na Ufes e não conheço o segundo andar do prédio de Direito. Corro o risco de eu me formar, voltar a dar aula aqui, e ainda não ter nenhuma acessibilidade. É desolador, um prédio de Direito, que ensina o cumprimento das leis, e ele mesmo não cumpre as leis. Nós estamos aprendendo, na prática, como descumprir uma lei”, disse.
O que mais parece incomodar os alunos é o fato de que o prédio foi inaugurado em 2010, bem depois da promulgação das Leis Federais de Acessibilidade, de nº 10.048/2000 e nº 10.098/2000.
O artigo 24 do Decreto n° 5.296 de 2 de dezembro de 2004, por exemplo, que regulamenta a acessibilidade, diz que “Os estabelecimentos de ensino de qualquer nível, etapa ou modalidade, públicos ou privados, proporcionarão condições de acesso e utilização de todos os seus ambientes ou compartimentos para pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, inclusive salas de aula, bibliotecas, auditórios, ginásios e instalações desportivas, laboratórios, áreas de lazer e sanitários”.
“É uma vergonha”
Um docente do curso de Direito, que preferiu não se identificar, convive com o problema de acessibilidade no local e caracterizou a situação como “vergonhosa”. “Isso é absurdo. A acessibilidade é um princípio básico, constitucional. Como esse curso funciona?”, disse.
MEC reprovou condições de acessibilidade
Procurado pelo G1, o Ministério da Educação (MEC) informou que o curso de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo passou por avaliação in loco em abril/2012, no âmbito do processo de renovação de reconhecimento. Entre os diversos requisitos, os avaliadores verificaram se a instituição apresentava condições de acesso para pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida.
Os avaliadores registraram no relatório de avaliação do referido curso que “A IES não apresenta boas condições de acesso a pessoas com deficiência. Embora o campus tenha rampas de acesso e a biblioteca tenha elevador, o prédio das salas de aula não tem nenhuma dessas instalações”.
De acordo com o MEC, questionada pela SERES em 2013, por meio de diligência no processo, a Ufes apresentou esclarecimentos, anexando solicitação e demais documentos encaminhados ao setor competente da Universidade para providências necessárias à adequação das instalações.
Ainda segundo o Ministério, as universidades federais são autônomas e recebem orçamento para atender as necessidades de custeio e de investimento. Cabe a universidade gerir esses recursos atendendo a legislação vigente no que concerne à acessibilidade de sua infraestrutura.
O Ministério da Educação conta com um programa específico, o Incluir, que visa implementar políticas de acessibilidade plena a pessoas com deficiência nas Instituições Federais (IFES).
Desde 2005, o MEC disponibiliza recursos para as Universidades com a finalidade de apoiar projetos de criação ou reestruturação de núcleos de acessibilidade nas IFES. No ano de 2014, foram repassados R$ 259.221,55 à Ufes no âmbito do programa Incluir.
MPF-ES
O MPF-ES informou que há um Inquérito Civil Público (ICP) que acompanha a situação da Ufes desde 2009. Regularmente, são expedidos ofícios à Universidade pedindo pareceres com detalhes técnicos acerca do processo de adequação da universidade às normas de acessibilidade, presentes na Lei n° 10.048, de 8 de novembro de 2000.
De acordo com o órgão, o objetivo principal desse ICP é saber se os projetos até então elaborados pela Prefeitura Universitária, bem como as demais medidas adotadas, são suficientes para atender os requisitos mínimos legais das normas de acessibilidade.
Ainda segundo o MPF-ES, foram encontradas duas denúncias ao órgão, ambas de 2014, em que os denunciantes, do curso de Direito e com limitações físicas, relataram ter pedido adequações do prédio do referido curso à Ufes, sem sucesso. As duas denúncias foram juntadas ao ICP.
Ufes
A Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) conta com um Núcleo de Acessibilidade (NaUFES), que tem por objetivo “coordenar e executar as ações relacionadas à promoção de acessibilidade e mobilidade, bem como acompanhar e fiscalizar a implementação de políticas de inclusão das pessoas com deficiência na educação superior”.
De acordo com os dados baseados em autodeclarações por ocasião da matrícula, a Ufes possui 39 estudantes com deficiência física; cinco com deficiência intelectual; 24 com deficiência auditiva; 39 com baixa visão; oito com cegueira; entre outros.
O coordenador do NaUFES, César Cunha, explicou que o núcleo reconhece as demandas da Universidade em relação a acessibilidade e que o processo de adaptação do campus está em andamento.
“Há cinco anos a direção do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE), onde fica o prédio do Direito, vem fazendo solicitações com referência à adaptação do prédio. E já existem projetos referentes a isso na Prefeitura Universitária. Os estudantes não estão desassistidos”, disse.
Segundo ele, na quinta-feira (25), foi realizada uma reunião com o Conselho Técnico da Ufes para que seja elaborado um diagnóstico que exponha as obras já realizadas, como está o andamento dos processos ainda em curso e o que ainda é necessário fazer em termos de tornar o campus mais acessível e democrático.
O coordenador não soube explicar porque o ED V, inaugurado dez anos após a promulgação da Lei de Acessibilidade não contempla as necessidade de pessoas com deficiência física. Mas disse que é possível comemorar os pequenos avanços.
“A lei é de 2000, mas se olharmos historicamente, ela está um bebê. Durante esses 15 anos, houve mudanças. Estamos longe do ideal, mas eu me levanto e aplaudo, pois coisas estão sendo feitas, antes nós não tínhamos nada. São avanços”, disse César.
A Gerência de Planejamento Físico da Prefeitura Universitária informou que o prédio ED-V foi construído em duas etapas. A primeira foi construída antes da Lei de Acessibilidade. Já a ampliação (segunda etapa), foi construída pela Prefeitura de Vitória depois da lei, mas também apresenta necessidades de melhoria em alguns espaços, como os banheiros.
A Gerência informou ainda que já foi feito um estudo no campus de Goiabeiras de todas as intervenções necessárias para garantir a acessibilidade motora aos prédios, mas a execução das obras depende da disponibilidade de verba.Desta forma, as obras são executadas de acordo com a disponibilidade de recursos, priorizando os prédios onde há usuários com necessidades especiais e cuja circulação esteja sendo prejudicada.
A Gerência de Planejamento Físico destacou ainda que, no Centro de Educação Física e Desportos, estão sendo realizadas diversas intervenções para resolver os problemas de acessibilidade. A última etapa da obra será concluída num prazo de três meses. O próximo centro a receber intervenções será o Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE), onde fica o ED-V.
Fonte: G1