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Aos meus queridos pais, com amor

Com biografias diferentes em tudo, dois autores (um judeu nascido no Egito e um gaúcho de Santo Ângelo) mostram como é semelhante a experiência de crescer tendo pai ou mãe com alguma deficiência física ou mental

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Saulo Szinkaruk, escritor

Como é ser filho de um pai esquizofrênico, que, nas crises mais severas, cobre os móveis da casa com lençóis para que não sintam frio e anda nas ruas a pé como se estivesse de carro, respeitando as mãos do trânsito? Como é ser filho de uma mãe completamente surda? Uma mãe que não pode receber um telefonema e nunca comparece a uma reunião na escola do filho, cujos coleguinhas não cansam de perguntar por que ela fala “com essa voz estranha”?

São comuns os relatos de pais sobre filhos com alguma deficiência, mas bem mais raros são os depoimentos de filhos de pais deficientes. Em sua última edição, a revista Piauí trouxe um artigo do publicitário e escritor Saulo Szinkaruk, 31 anos, gaúcho de Santo Ângelo, contando sua experiência com o pai esquizofrênico. Na mesma época, a revista The New Yorker publicou um artigo do escritor André Aciman, 63 anos, judeu nascido em Alexandria, no Egito, e hoje professor em Nova York, cuja mãe ficou surda meses depois de nascer em decorrência de uma meningite.

Os dois relatos são tocantes, corajosos, dramáticos, uma combinação perfeita de solidão e esperança, como um quadro de Edward Hopper. Apesar das enormes diferenças na biografia dos dois autores – de idade, origem, idioma, cultura -, os artigos mostram que a experiência de crescer com um pai ou uma mãe com alguma deficiência, física ou mental, guarda semelhanças impressionantes. Quanto mais relatos dessa natureza vierem a público, quebrando a reticência e a vergonha, mais enriquecedor será para as famílias que estão vivendo situações similares.

Por exemplo: como as crianças são informadas do problema do pai ou da mãe? Szinkaruk escreve: “Embora desde cedo tivessem me dito que meu pai era doente e que eu precisava entender, ninguém nunca me contou o que ele tinha nem se algum dia se curaria”. Aciman também ecoa a preocupação sobre a cura: “Eu sempre soube que minha mãe não podia ouvir, mas não me lembro quando me dei conta de que ela seria surda a vida toda. Se alguém me disse, eu não acreditei”.

Com franqueza, os autores falam dos embaraços e não escondem sentimentos menos nobres. Szinkaruk conta: “Por mais que as crises me envergonhassem, nunca procurei esconder meu pai”. Mais adiante, quando já estudava em outra cidade, longe de casa, ele celebra ter “construído uma redoma, um espaço onde a fugacidade do convívio com meu pai me desobrigava de fingir que a doença não existia”. Do mesmo modo, Aciman lembra como, na Alexandria de sua infância, as pessoas riam da voz gutural, monótona, de sua mãe. “Não era uma gargalhada. Era um escárnio, esse enteado do desprezo, tão desolador quanto cruel.” E confessa quanto, mais tarde, se exasperava com a surdez da mãe e perdia a paciência: “Quem vive com um surdo para de sentir piedade. Em vez disso, pulamos rapidamente da pena para a crueldade”.

Os dois são filhos de casamentos infelizes. Szinkaruk conta que sua mãe casou aos 19 anos, já grávida dele, sem saber que o marido era esquizofrênico. Tiveram outro filho, e só se separaram quando os meninos estavam crescidos. O pai de Aciman apaixo­nou-se pela bela jovem surda de 19 anos. Casaram-se três anos depois, mas a surdez nunca deixou de ser “um muro intransponível” entre eles. O pai adorava música clássica, a mãe jamais fora a um concerto. O pai lia novelas russas e escritores franceses modernos. A mãe preferia revistas de moda. Ele era caseiro, ela adorava sair para dançar. “Eles se amaram até o último dia, mas se desentenderam, discutiram e se insultaram um ao outro todo santo dia.”

É tocante constatar como as deficiências são contornadas. Aciman conta que, num dia especialmente frio, quando se exercitava ao ar livre, passou pela casa da mãe e resolveu visitá-la. Combinaram um jantar, discutiram o cardápio e, subitamente, Aciman percebeu que toda a conversa se dera sem que ele tivesse tirado a máscara de esqui, que deixava apenas seus olhos à mostra. “Ela me entendia acompanhando o movimento das minhas sobrancelhas.” Szinkaruk expõe o drama próprio do transtorno mental de seu pai. “A esquizofrenia e a mente do meu pai eram uma coisa só, indissociáveis. E por isso eu nunca soube, nem nunca vou saber – de tudo o que ele me disse e fez, de tudo o que deixou de me dizer e fazer -, quando ele era ele mesmo e quando estava sob a influência da doença. No dia em que disse que sentia muito orgulho de mim, sentia mesmo isso ou estava apenas tendo um delírio, imaginando um filho que não era o dele? Como posso considerar verdadeira e sincera uma lembrança se desde pequeno fui ensinado a julgar seus atos como frutos de uma mente doente?”

Szinkaruk relembra quando foi visitar o pai já doente, acamado. “Ele deitado, eu sentado em uma cadeira aos pés da cama. (…) Estávamos praticamente em silêncio. Não tínhamos muito assunto, então eu apenas ficava ali, calado ou comentando trivialidades. Sabia que minha companhia bastava. De repente, ele começou a chorar. Um choro desgarrado, daqueles que o sujeito fica um tempo sem respirar e depois puxa o ar com força quase desesperada. Pensei que estivesse sentindo muita dor e ensaiei alguma pergunta. Foi quando ele falou: ‘Eu fracassei em tudo, meu filho. Em tudo. Sempre tinha alguém mais forte do que eu’. É difícil dizer se doeu mais perceber quanto meu pai havia sofrido ao longo da vida ou entender que, mesmo com a doença, ele sempre soubera que sua história tinha sido uma sucessão de tentativas malogradas.”

Seria bom se a divulgação de relatos assim se tornasse mais comum. São histórias que engrandecem homens e mulheres. A mãe de Aciman não precisava ouvir para entender. O pai de Szinkaruk não precisava entender para sentir.

Fonte: Veja Abril

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