Usando um exoesqueleto, uma pessoa paraplégica vai se levantar da cadeira de rodas, caminhar por cerca de 25 metros no campo da Arena Corinthians, em São Paulo, no dia 12 de junho, e realizar o pontapé inicial da Copa do Mundo da Fifa 2014.
No estádio, o público será de quase 70 mil pessoas, mas bilhões de espectadores também poderão acompanhar pela televisão o que pode ser uma das maiores conquistas da ciência brasileira e mundial.
O sonho de dezenas de cientistas do projeto Andar de Novo está caminhando para se tornar realidade. A cinco meses da abertura do Mundial, o cronograma está em dia e, neste mês, começam testes essenciais para que tudo dê certo na abertura da Copa.
Oito pacientes paraplégicos foram selecionados na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), em São Paulo, onde foi criado um novo laboratório de neuro-robótica.
“Eles estão fazendo os testes básicos e, nos próximos dias, começarão a interagir com um ambiente virtual e com uma veste robótica estática, que permite que andem sem sair do lugar. Podemos medir a reação do paciente, como ele está se saindo, calibrar os dados de cada paciente antes da chegada do exoesqueleto ao Brasil, prevista para fevereiro”, explicou o coordenador do projeto, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis.
“O nosso objetivo é criar novas tecnologias que possam restabelecer de uma forma significativa o controle motor em pacientes que sofram com lesões da medula espinhal e outras doenças neurológicas que geram um grau de paralisia muito severo”, explica Nicolelis.
Projeto Andar de Novo
O projeto Andar de Novo tem a participação do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, idealizado por Miguel Nicolelis, e a parceria da AACD, mas é um consórcio internacional sem fins lucrativos.
Há cientistas da Universidade de Duke, na Carolina do Norte (Estados Unidos), onde Nicolelis leciona, além de universidades dos estados norte-americanos do Colorado, Kentucky e Califórnia, instituições europeias em Munique (Alemanha), em Lausanne (Suíça), e em Paris (França). O projeto é apoiado pela Agência Brasileira da Inovação (Finep), com R$ 33 milhões.
“Não precisamos inovar como os outros países inovaram. Podemos ter a nossa própria estratégia de desenvolver uma indústria biomédica, ou uma ciência que tenha impacto para a sociedade. Se tudo der certo do jeito que a gente planejou, é um marco para a ciência brasileira. É uma maneira totalmente nova de mostrar para pessoas que jamais teriam contato com notícias científicas que a ciência está em todo lugar, que a ciência faz parte da nossa vida. Vai ser como colocar o homem na lua. Eu gosto de usar essa metáfora, porque é conquistar um patamar, um grau de audácia e inovação que as pessoas fora do Brasil não estão acostumadas a associar ao Brasil”, afirma o cientista brasileiro.
Captação de sensações e vontades
Para que os pacientes possam andar de novo, eles contarão com a ajuda de uma veste robótica – o chamado exoesqueleto. O artefato já foi desenvolvido e está passando por testes finais de segurança, controle e estabilidade na França.
Segundo Nicolelis, o exoesqueleto incorpora as mais modernas tecnologias do mundo da robótica. O paciente poderá controlar o exoesqueleto apenas com atividade cerebral. As mensagens fornecidas pelo cérebro, como a vontade de andar, de se mexer ou de parar, serão captadas pelo robô para que os movimentos sejam gerados. E o exoesqueleto também devolverá ao paciente sensações do mundo exterior.
A base disso é o conceito de Interface Cérebro-Máquina-Cérebro. Em um primeiro momento, sensores conseguem ler os sinais elétricos gerados pelo cérebro e extrair desses sinais a mensagem que produz o movimento, fazendo com que um artefato robótico ou virtual também se movimente. Na segunda etapa, sensores táteis acoplados ao aparelho mandarão sinais para o paciente.
“Quando a pessoa tocar o chão, quando o joelho da veste robótica se mexer, os sensores táteis permitirão que esses sinais gerados no robô possam ser devolvidos para o sujeito através de uma camiseta que transmite esses sinais de volta para a pele dos braços ou do dorso, onde a pessoa ainda tiver a sensibilidade intacta”, disse Nicolelis.
A camiseta foi desenvolvida na Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça. O cientista afegão Solaiman Shokur, um dos pesquisadores que participaram desse trabalho, atualmente integra a equipe do Instituto de Neurociências de Natal. Segundo ele, o feedback tátil permitirá que o paciente caminhe sem precisar ficar constantemente olhando para baixo.
“Não queremos uma pessoa usando o exoesqueleto e olhando para o chão todo o tempo. A camiseta tem pequenos sensores que vibram e que dão o retorno para o paciente, transmitem a ele sensações táteis. Ele não precisa olhar para o chão para saber onde está pisando. A pessoa não vai acreditar apenas no que ela vê, mas também vai sentir o feedback tátil”, explicou Shokur.
“Plano de voo”
Enquanto os testes finais são feitos com o exoesqueleto na França, os pacientes da AACD iniciarão um treinamento do controle cerebral da veste robótica antes de usá-la. Para isso, utilizarão um ambiente virtual desenvolvido em Natal e que foi reproduzido no laboratório montado em São Paulo.
“Você pode pensar numa simulação de voo. Se você tem um piloto e quer ensiná-lo como voar, não pode colocá-lo em um avião e dizer ‘voe’. É preciso ensiná-lo antes – e a melhor maneira de fazer isso é usando um simulador, em uma simulação realística o suficiente para que se aprendam todos os aspectos do voo. Aí, sim, você o coloca num “avião”, o exoesqueleto”, comparou Shokur.
Nos testes em ambiente virtual, o paciente usa uma veste robótica estática e vê um avatar de si mesmo se mexendo na frente dele. “Ele receberá o feedback tátil dos passos do avatar usando essa veste, permitindo que sinta na região do corpo onde ele tem sensibilidade o que acontece com o avatar quando os pés tocam no chão. E esses pés estão sincronizados com os pés da veste robótica. Nesse ambiente virtual, ele também pode usar os sinais cerebrais para controlar os movimentos do avatar. Tudo isso o prepara para o passo seguinte, que é vestir o exoesqueleto”, acrescentou Nicolelis.
Pontapé não é ponto final
O pontapé inicial na Copa será uma demonstração importante e um marco para o projeto Andar de Novo, mas a equipe é unânime em enfatizar que não é ponto final.
“Nossa intenção é manter toda essa equipe, continuar trabalhando com o governo brasileiro e com os nossos parceiros, para chegar até o objetivo final, que é criar uma veste robusta o suficiente para que qualquer paciente com uma lesão na medula espinal possa tirar vantagens. Não só pacientes com paraplegia, mas também para pacientes com tetraplegia, com lesões mais altas e que tenham boa parte do corpo paralisada. O que queremos é usar a abertura da Copa para mostrar para o mundo que nós estamos chegando perto disso”, disse Nicolelis.
O neurocientista explica que a demonstração no dia 12 de junho será restrita a algumas possibilidades da tecnologia. “É uma demonstração peculiar, com uma série de fatores de risco: ao ar livre, com 70 mil pessoas no estádio, sinais de televisão do mundo inteiro e telefones celulares. Por isso, optamos por uma técnica mais conservadora, usando sensores superficiais no couro cabeludo. Eles capturam ondas cerebrais globais e os sinais são transmitidos para o exoesqueleto, para controlar os diferentes movimentos gerados por ele”, acrescentou.
Segundo Nicolelis, já foram desenvolvidos microchips que, no futuro, poderão ser implantados superficialmente no cérebro do paciente, por meio de uma cirurgia rápida, semelhante ao procedimento de um marca-passo cardíaco.
“Parece que é o meu corpo”
Entre fevereiro – quando o exoesqueleto já estiver no Brasil –, e maio, o desafio dos pacientes será aprender a usar o exoesqueleto com segurança e naturalidade. O número de pacientes da AACD envolvidos no projeto deve crescer de oito para dez. Deles, três vão ser escolhidos para a demonstração: um titular e dois substitutos.
“A nossa teoria é que leva certo tempo para essas ferramentas complexas serem incorporadas pelo nosso cérebro como se fosse extensão do nosso corpo, para ter a sensação de que é natural. E temos alguns meses para fazer com que os pacientes sintam que o exoesqueleto é o corpo deles literalmente. Precisamos dar tempo a eles para interagirem com o exoesqueleto. Um certo dia, quando o paciente entrar no laboratório, vai falar: ‘parece que é o meu corpo’. Vai ser como um estalo, porque o cérebro vai ter feito essa transição”, contou Nicolelis.
Fonte: Tribuna da Bahia