Mãe tetraplégica conta como realizou o sonho da maternidade
Sentada em cima da mesa da cozinha, a menina loira de um ano e três meses pega um pedaço de mamão e o coloca na boca da mãe. Franze o nariz, abre um sorriso cheio de dentes de leite, percebe que a mãe gostou e se posiciona para repetir a tarefa. Pouco fala além de ‘mama’ ou ‘papa’, mas entende e obedece a voz calma e macia da mulher que lhe deu a vida.
É em uma rua asfaltada sem nome, ligando Farroupilha a Garibaldi e Carlos Barbosa, que fica guardada uma história pontuada por vários acontecimentos bruscos. Débora de Aranha Haupt, 32 anos, vê da janela ampla os carros passando enquanto se esforça para retribuir a atitude da filha. Com movimentos limitados pela tetraplegia, pega com dificuldade um pedaço de mamão para dar à filha Manuela, uma das poucas comidas que consegue retirar do prato com o adaptador usado nas mãos. Quem vê o sorriso constante, quase emoldurado no rosto da mulher, não imagina o contraste entre o passado e o presente. Há seis anos Débora sofreu um acidente de moto que adiou o sonho da maternidade.
— Eu sempre tive essa vontade de ser mãe. Mas eu casei cedo, com 23 anos. Então era uma coisa que eu sempre dizia “ah, daqui a cinco anos a gente pensa em ter filho”. Só que, no meio desses cinco anos, aconteceu o acidente — conta Débora.
Um período difícil
Na garupa da moto do marido Jair Antônio Angelin, 37 anos, ia para uma aula de inglês, em Bento Gonçalves, como todos os finais de tarde das sextas-feiras. A última vez em que o casal fez o trajeto foi em 25 de agosto de 2006, quando colidiu contra um carro. Com o impacto, ela mergulhou de cabeça no chão. Nos primeiros minutos após o acidente, não sabia ao certo o que havia acontecido, mas teve a certeza de que era algo sério.
No hospital, ninguém lhe disse que havia ficado tetraplégica. Os primeiros testes de sensibilidade e o desespero de não sentir os toques é que confirmaram o diagnóstico. Não foi apenas com a mudança abrupta de vida e com o corpo inativo na cama de hospital que a mente teve de lidar. Uma semana depois do acidente, soube que seu pai, Ricardo Luiz Haupt, estava com câncer terminal.
Quando conta os episódios que marcaram este período, a cadeirante não se detém à tristeza. A fisioterapia começou nas primeiras semanas. Em meio à recuperação de alguns movimentos nos braços, vieram três pneumonias. Depois de se recuperar, uma notícia boa: receberia tratamento no Sarah, em Brasília, um hospital de reabilitação. Lá é que soube que o sonho de ser mãe poderia ser levado em frente.
Foi nele que Débora se agarrou. Dois anos depois do acidente, recebeu uma herança do avô e conseguiu reformar a casa, adaptando os cômodos. A cada ida ao Sarah, que acontecia de seis em seis meses, moldava as limitações dentro da nova realidade. Também reaprendia a comer sozinha, a se maquiar, a escovar os dentes e a pintar. Quando viu, as peças estavam no lugar. Apesar de montado, o quebra-cabeça não estava completo. E não era na recuperação dos movimentos físicos que pensava:
— Na penúltima ida ao Sarah, eu fui com esse tema: ser mãe. Era a hora e eu queria saber como era e como devia fazer.
Algumas cadeirantes que frequentavam o hospital haviam engravidado e isso a encorajou. Procurou em Bento Gonçalves a obstetra Liane Xavier Domingues.
— Discutimos os riscos da gestação, do parto e como seria a vida dela depois, com o nenê e as limitações — explica a médica.
Mesmo ciente de possíveis complicações como trombose e infecção urinária, devido ao uso de cadeira de rodas, Débora estava decidida. Manuela veio ao mundo de forma natural. Já que Débora não sente os movimentos dos ombros para baixo, escapou da dor, mas não das percepções de ter um filho no ventre.
— Eu não tinha a sensação, as contrações, mas via a minha filha se mexer. E foi sensacional — relata.
Quando o choro da criança irrompeu na sala iluminada, e se misturou com a música ambiente, ela fechou os olhos e deixou que deles saísse, em forma líquida, o alívio. Dez de janeiro de 2012 não foi apenas o dia em que a Manuela nasceu, foi também o momento em que Débora deixou no passado o acidente, duas cirurgias na coluna e a perda do pai para ser a mãe.
Nova companheira
Débora deu vida mais do que a uma filha, mas a uma companheira. Não pode realizar várias tarefas, como trocar a nenê ou preparar as refeições, mas está sempre presente.
A mãe e Manuela vivem rodeadas de carinho. O marido fez a escolha de trabalhar em casa para estar perto da família e cuidar das suas “mulheres”. Diariamente, também recebe ajuda da empregada Vera da Conceição Rodrigues de Souza, que troca Manuela, faz o almoço e auxilia a cadeirante. Ao ir para o colo de Débora por meio das mãos de Vera, a menina não estende os braços, como faz com qualquer outra pessoa. A ama tanto que, de alguma forma, sabe que a mãe não possui os movimentos das mãos. Sorri ao se aconchegar no colo da mãe e a envolve em um abraço.
Zero Hora