Vicente Aparecido caminha diariamente, e com cautela, pelas ruas e avenidas do bairro Vila Remo, na Zona Sul de São Paulo. Como a maioria dos pedestres, ele se irrita com os obstáculos encontrados pelo caminho, como buracos, lixo e fezes de cães. Por ser cego, o homem de 38 anos considera um verdadeiro desafio andar pela região, principalmente pela Estrada do M’Boi Mirim.
Na via, a principal e mais movimentada do bairro, os perigos são constantes. Enquanto agita rente ao chão e de um lado para o outro sua bengala, ele logo encontra lixo e entulho no meio da calçada. Para superar o obstáculo, se aproxima da rua. “Coisas assim são arriscadas. Eu fico muito perto dos carros e posso ser atropelado”, disse, enquanto caminhava a centímetros do meio-fio.
Aparecido é apenas um dos cerca de 1,35 milhão de pessoas com algum tipo de deficiência que vivem na capital paulista. O número corresponde a 12% da população paulistana, segundo a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida. Os que mais sofrem são os cadeirantes e os cegos. Enquanto os primeiros precisam muitas vezes mudar o trajeto por conta de obstáculos como entulho no meio da calçada ou buracos, os deficientes visuais dependem da boa vontade de outras pessoas para caminhar.
Atravessar uma movimentada via como a Estrada do M’Boi Mirim, por exemplo, tarefa arriscada até para quem enxerga, torna-se algo quase suicida para pessoas como Aparecido. “Você também depende de ajuda para pegar ônibus e para descer no ponto certo. O pessoal do bairro é bem legal comigo. Mas também não tenho vergonha de pedir ajuda”, disse.
Uma medida paliativa e necessária é a instalação de mais semáforos sonoros pela cidade. De acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), apenas um dos 6.146 cruzamentos com semáforos existentes em São Paulo conta com esse equipamento especial. Em fase de testes, ele está situado na Rua Conselheiro Brotero, na Barra Funda, Zona Oeste. De acordo com a CET, a rua foi escolhida para abrigá-lo por ficar próximo à Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual (Laramara).
Especialistas ouvidos pelo G1 disseram, no entanto, que isso não garante a segurança dos cegos, pois há sempre a possibilidade de um “apressadinho” desrespeitar as regras de trânsito e parar em cima da faixa de pedestre ou, situação pior, ultrapassar o sinal vermelho. “A falta de educação, que para a gente que enxerga é ruim, para eles é impraticável”, disse a ortoptista (especialista em distúrbios visuais) Eliana Cunha Lima, gerente de serviços especializados da Fundação Dorina Nowill. “Na correria, esbarram e quebram bengalas sem querer. Ainda há muito para desenvolver.”
Até quem tem boa vontade precisa tomar cuidado para não prejudicar o deficiente visual. “Cego não é surdo. As pessoas chegam berrando para conversar com a gente”, disse Aparecido. “E quando alguém quer ajudar, à vezes vem pegando no braço. O deficiente visual não vê que tem alguém se aproximando. Quando a pessoa chega, pega no meu braço, eu acabo levando susto.” Apesar dessas ações atrapalhadas, ele disse apreciar o auxílio recebido. “Costumo dizer que não tem gente ruim. O que tem no mundo é gente despreparada.”
A abordagem ideal é simples. “Não precisa berrar nem pegar no braço. Basta perguntar se preciso de ajuda. Eu respondo que sim e peço para pegar no braço dela, não o contrário. Assim eu fico mais seguro”, afirmou Aparecido. “O pior é quando a pessoa já pega no braço e sai andando. Assim eu me sinto muito inseguro.”
Mas o que mais Aparecido teme dentre todos os obstáculos existentes são os orelhões. “A gente não consegue localizar com a bengala. Eu já acabei entrando no orelhão. Às vezes a gente se machuca”, afirmou o homem, que por causa de um glaucoma, começou a perder a visão aos 16 anos e ficou totalmente cego no começo de 2011.
A melhor solução apontada é a instalação de pisos táteis ao redor do orelhão – como ocorre em todos os equipamentos instalados na Avenida Paulista. Os pisos táteis são facilmente identificáveis pela cor amarelada e pelo formato: tracejado (direcional, que serve para indicar o caminho do deficiente) ou pontilhados (para alertar a respeito de obstáculos como rampas e degraus).
“Quem deve fazer isso é o munícipe, desde que o orelhão esteja em sua calçada, ou a Prefeitura, quando ela reforma toda a calçada”, disse a arquiteta cadeirante Silvana Cambiaghi, secretária-executiva da Comissão Permanente de Acessibilidade da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida. Além da Paulista, a secretária citou como exemplo de via adequada aos deficientes a Avenida Brigadeiro Faria Lima. Na reforma que atualmente é feita em suas calçadas, a Prefeitura instalou pisos táteis em toda sua extensão.
Mobilidade
Quem também sofre com os costumeiros buracos nas calçadas e outras barreiras é o remador Luciano Luna de Oliveira, de 34 anos. Cadeirante desde os 17 anos, quando foi baleado na porta da escola em que estudava, na Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, o atleta chega a se irritar ao circular pela Vila Mariana, na Zona Sul da capital.
Mesmo no bairro de classe média, os problemas nas vias são semelhantes aos encontrados na periferia: degraus, buracos, árvores e postes no meio do passeio. Todos esses obstáculos aumentam a probabilidade de acidentes. “Temos muitos relatos de queda. Pessoa que caiu em um buraco, ou que teve o andador ou a muleta chutado. De paciente que se assustou com carro quando atravessava a rua e que caiu por isso”, disse a fisioterapeuta Clarissa Barros, supervisora do setor de fisioterapia de adultos da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) central, também situada na Vila Mariana.
Oliveira disse já ter perdido a conta de quantas vezes caiu na rua. Fora os machucados, o que mais o incomoda são os danos que sua cadeira de rodas sofre nesses acidentes. “Já perdi muitas cadeiras por causa de buraco. Às vezes a cadeira não dura nem um ano”, disse. O prejuízo é grande. “A que eu uso atualmente, esportiva, custa R$ 3 mil. Mas tem uns modelos que valem uns R$ 4 mil, R$ 5 mil.”
As condições em que se encontram as calçadas, segundo a supervisora da AACD, acabam minando o entusiasmo dos deficientes. “Muitas vezes nós reabilitamos o paciente aqui na instituição, ele sai conseguindo se locomover, mas acaba ficando limitado, não saindo muito, não se socializando, porque tem receio do que vai encontrar na rua.”
De acordo com a Secretaria de Coordenação das Subprefeituras, a responsabilidade pela construção e manutenção das calçadas é do proprietário e do locatário do imóvel. A largura mínima para garantir a passagem das pessoas deve ser de 1,20 metro. Quem descumpre a norma pode receber multa de R$ 300 por metro linear (o dono de uma loja que tem calçada danificada de 20 metros de extensão, por exemplo, receberá multa de R$ 6 mil).
Balcões
Além dos problemas nas vias já citados, os deficientes sofrem com balcões muito altos, portas de lojas estreitas que impossibilitam a passagem de uma cadeira de rodas e escadas em frente a estabelecimentos. Outro fator que os desestimula são as adaptações (muitas vezes malfeitas) em estabelecimentos como cinemas, teatros e bares, que geralmente separam os piores lugares para deficientes físicos. “Parece que as pessoas que fazem a adaptação não entendem exatamente as necessidades da nossa população”, disse a especialista.
Mas o que realmente tira do sério o atleta Oliveira é quando pessoas sem nenhuma deficiência utilizam espaços reservados a quem tem alguma dificuldade de locomoção. “Banheiro público é outro problema. Muitas vezes os adaptados estão ocupados. Então eu prefiro fazer as necessidades antes de sair de casa”, afirmou. Dono de um veículo adaptado, ele disse que é comum encontrar vagas especiais ocupadas em shoppings e supermercados. “Às vezes você vai estacionar e o cara para na vaga e sai andando do carro, sem nenhuma deficiência. Os caras não se ligam.”
Essa falta de consciência em relação às deficiências alheias, na opinião da fisioterapeuta Clarissa, decorre principalmente do desconhecimento das dificuldades enfrentadas. “As pessoas muitas vezes não conhecem as limitações físicas e isso faz com que elas não as respeitem. Isso [conhecimento das deficiências] devia vir desde a educação dentro de casa, nas escolas, e das leis que deveriam ser mais seguidas e mais rígidas.”
Transporte
Se a locomoção nas calçadas é complicada, a situação nos ônibus da capital, segundo os especialistas e os deficientes, não é tão diferente. O problema maior não é a quantidade de veículos adaptados – de acordo com a São Paulo Transporte (SPTrans), dos mais de 15 mil ônibus da cidade, 7.662 são acessíveis (o que corresponde a cerca de 51% da frota) -, mas a qualidade do serviço.
O cego Aparecido disse que, sempre que entra num coletivo, é auxiliado para sentar nos assentos reservados a deficientes e idosos. O problema ocorre quando ele precisa descer. Além da lotação acima da média, que dificulta sua locomoção no interior do veículo, motoristas geralmente param distantes dos pontos. “Para quem enxerga tanto faz se ele para a alguns metros da calçada ou fora do ponto, mas para mim isso dificulta muito.”
Quem tem dificuldade em se locomover também sofre, principalmente com os solavancos e as freadas bruscas. “Uma vez quase caí no ônibus. Se eu não me segurasse, teria caído”, contou Oliveira. Dependendo do horário – e da boa vontade do motorista e do cobrador –, ele acaba sem auxílio para amarrar sua cadeira ao espaço reservado aos cadeirantes.
Já as composições da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e do Metrô recebem vários elogios. “Os deficientes têm assessoria maior no metrô e nos trens, com auxílio de funcionários”, disse a ortoptista Eliana.
Aparecido gosta dos serviços prestados pelos metroferroviários. Sempre que chega a uma estação, ele aguarda um funcionário levá-lo a uma plataforma até que uma composição chegue. Dentro do vagão, senta-se nos assentos preferenciais e se levanta assim que ouve o condutor anunciar a estação onde irá descer. “Quando eu saio, já tem outro funcionário me esperando para levar para a saída da estação. Eles são bem organizados.”
Fonte G1