1. As disposições legais
A ordem constitucional inaugurada com a Carta Republicana de 88 trouxe uma tentativa de minimizar as desigualdades que ocorrem no bojo da nossa sociedade. Tal é o que preceitua a Carta Política como um de seus objetivos:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
………….
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
Um nítido caso dessa minoração das desigualdades que ocorrem no seio da nossa sociedade é a reserva de vagas em concursos públicos para portadores de deficiência, consubstanciada nos seguintes termos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
………………..
VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;
Nos termos de lei infraconstitucional ordinária, destarte, deve ser estabelecido um percentual de cargos e empregos públicos para que pessoas com determinada deficiência física, numa tentativa de compensar a desigualdade decorrente da sua condição física. Trata-se de nítido desdobramento do princípio da isonomia (I, art. 5º da CF), na sua faceta material: discrímen legal razoável que busca compensar as desvantagens da condição de um determinado grupo e tendo como objetivo promover o inciso III do art. 3º acima transcrito. É como nos aponta José Afonso da Silva:
“Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os ‘iguais’ podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados irrelevantes pelo legislador. Este julga, assim, como ‘essenciais’ ou ‘relevantes’, certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos ou elementos as categorias estabelecidas pelas normas jurídicas; por conseqüência, as pessoas que apresentam os aspectos ‘essenciais’ previstos por essas normas são consideradas encontrar-se em ‘situações idênticas’, ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos.(…)
Esses fundamentos é que permitem, à legislação, tutelar as pessoas que se achem em posição econômica inferior, buscando realizar o princípio da igualização,(…)” [01]
Surge, em 1989, a lei federal ordinária 7.853, estabelecendo normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências e sua efetiva integração social, conforme o caput do art. 1º do referido diploma. Mais a frente, assim reza a lei:
Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo, à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
………………..
III – na área da formação profissional e do trabalho:
………………..
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de deficiência;
Em 1999, veio o Decreto Regulamentar 3.298, dispondo:
Art. 37. Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.
§ 1o O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida.
§ 2o Caso a aplicação do percentual de que trata o parágrafo anterior resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.
Para exemplificar. Suponha que um edital de determinado concurso público preveja 6% das vagaspara portadores de deficiência e o número total de vagas previstas no edital é de 10. Francisco, portador de deficiência, classifica-se para o concurso em primeiro lugar dentre os deficientes. Como o percentual é de 6% sobre as vagas, teremos 0,6 vagas para os portadores, devendo ser essa fração ser arredondada para o primeiro inteiro subseqüente, tendo ao final 1(uma) vaga para os portadores, que irá se preenchida pelo Francisco.
Portanto, a regra do parágrafo 2º logo acima não deixa dúvidas de que deve ser assegurado sempre algum número de vagas para os portadores deficiência.
2. No STF
No RE 227229/MG, o Pretório Excelso analisou o seguinte caso. A autora do recurso prestou concurso público para a Prefeitura da cidade, cujo número de vagas era igual a 8. Nos termos da lei complementar 09/92, reguladora da CF no âmbito da Administração Municipal, o número de vagas para portadores de deficiência seria de 5%. No concurso em questão, o número de vagas do concurso seria de 0,4.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim considerando, entendeu que não havia vagaspara os portadores de deficiência em face daquele percentual fracionado. Insatisfeito com o decisório, a autora recorreu ao STF. O relator do recurso, Ministro Ilmar Galvão, assim decidiu no seu voto:
“De ter-se, em face da obrigatoriedade da reserva de vagas para portadores de deficiências, que a fração, a exemplo do disposto no Decreto no 3.298/99, seja elevada ao primeiro número inteiro subseqüente, no caso 1 (um), como medida necessária a emprestar-se eficácia ao texto constitucional, que, caso contrário, sofreria ofensa.”
Assim, o ex-Ministro aplicou as disposições do Decreto no 3.298/99 por analogia de modo a garantir do direito do autor do recurso e, por tabela, zelar pela higidez da Constituição. Tal entendimento vem sendo reiteradamente seguido pela jurisprudência:
“Nos termos do julgado proferido no RE nº 227.299/MG, da relatoria do Ministro Ilmar Galvão, ‘a exigência constitucional de reserva de vagas para portadores de deficiência em concurso público se impõe ainda que o percentual legalmente previsto seja inferior a um, hipótese em que a fração deve ser arredondada. Entendimento que garante a eficácia do artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido’.”[02]
“Ao candidato aprovado e classificado em concurso público para vaga destinada aos portadores de deficiência, deve ser assegurada à convocação para o seu preenchimento, ainda se o cálculo do percentual legalmente previsto resultar em número fracionado, hipótese em que deverá ser arredondado para cima. Precedente do STF.” [03]
3. A aplicação na jurisprudência
Não obstante isso, alguns problemas surgem quando do arredondamento estatuído no referido Decreto, mormente no âmbito da Administração Pública Federal. Isso porque a lei 8.112/90, que traça o regime jurídico do servidor público federal, assim dispõe:
Art. 5o São requisitos básicos para investidura em cargo público:
§ 2o Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; paratais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.
Imagine a seguinte situação. Um concurso público na Administração Federal abre apenas 3 vagaspara um determinado cargo, com possibilidade de abertura de novas vagas durante o prazo de validade do concurso, e atribui 20% das vagas aos deficientes. Mais uma vez, Francisco, estudioso, é novamente aprovado no concurso e fica em 5o lugar. Ele tem direito a uma das vagas abertas, de plano, no edital?
Se fizermos o mesmo raciocínio no concurso anterior, temos a fração de 0,6. Arredondando para o primeiro inteiro subseqüente, chegamos à conclusão de que Francisco faz jus a uma vaga.
Mas isso é falacioso! Calculando o percentual de vagas que foram efetivamente destinadas aosdeficientes no concurso, no caso uma, chegaremos ao percentual de 33,33%, o qual supera o percentual máximo de 20% permitido pela lei 8.112/90.
Ficamos numa situação aparentemente contraditória. A Constituição garante esse direito aosdeficientes, mas a legislação infraconstitucional, nesse caso, entra em contradição: se respeitarmos o arredondamento do Decreto 3.298/99, violaremos a lei 8.112/90; mas se não fizermos o arredondamento, o direito constitucionalmente garantido se torna estéril. De um lado temos os direitos compensatórios dos deficientes físicos, do outro temos a própria discricionariedade administrativa, a qual pemite que os administradores avaliem, embasados em motivos de oportunidade e conveniência, qual o percentual de vagas que deve ser destinado aos deficientesquando da realização de um concurso público. Qual a solução?
Como dito acima, os deficientes físicos possuem uma atenção especial da Constituição. Além da reserva de vagas em concursos públicos, temos uma série disposições constitucionais que nos fazem entrever umprincípio de respeito à portadora de deficiência. Como diz Dworkin, “o legislativo endossa princípios aprovando a legislação que esses princípios justificam” [04]. É o que podemos observar nas disposições constitucionais:
a) na organização político-administrativa da Federação, os deficientes físicos são destinatários de proteção por parte de todos os entes federativos:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
…………….
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
b) na assistência social, também visualizamos:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
……………
IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
c) na educação, é também papel do Estado zelar pela integração da pessoa deficiente na rede de ensino:
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
…………..
III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
d) para as pessoas portadoras de deficiência física e que estão em desenvolvimento biológico (crianças e adolescentes), a Constituição também assegura um respeito as suas condições:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º – O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:
………….
II – criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
§ 2º – A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
Por outro lado, temos que levar em consideração o princípio da supremacia do interesse público, que permeia o regime jurídico administrativo. Como corolário lógico do princípio republicano (caput do art. 1º da CF), o gerenciamento da Administração Pública deve atender ao interesse público, não podendo ser usado como manto protetor para a concessão de benesses ou privilégios odiosos, mas apenas, e somente, atingir o bem-estar da sociedade.
Assim, balizando-se os dois princípios, podemos chegar a uma solução conciliatória entre essas duas diretrizes básicas. Voltando ao nosso exemplo. Se Francisco está na 5º colocação na lista de classificados, ele deverá esperar que sejam abertas mais duas vagas, preenchendo a última aberta dentre estas. Dessa forma, respeita-se o direito do Francisco e, ao mesmo tempo, a discricionariedade administrativa.
No entanto, poder-se-ia argumentar: se outras vagas não forem abertas no decurso do prazo de validade do certame, não será tornado sem efeito percentual estabelecido? É com base nesse tipo de crítica que o STJ vem reiteradamente adotando a seguinte linha de raciocínio, calcado na premissa de que existem duas listas de classificados: a lista dos deficientes, os quais concorrem apenas para as suas vagas destinadas pelo edital; e a lista dos não-deficientes, que concorrem para o restante das vagas. Quando for feito o preenchimento das vagas, procede-se a nomeação alternada das vagas com os candidatos de ambas as listas.
Vejamos o voto do Min. Gilson Dipp no RMS 18669/RJ:
“Assim sendo, seguir a orientação da Corte de origem, de que apenas com a nomeação de 10 (dez) candidatos pode um deficiente ocupar uma vaga, é ignorar a norma contida nos dispositivos acima transcritos, bem como o princípio da relativização da isonomia, chegando à absurda conclusão de que para assegurar 01 (uma) vaga ao candidato deficiente, levando em conta o percentual de 5%, o concurso teria, necessariamente, que oferecer pelo menos 20 (vinte) vagas. Não é esse o escopo protetivo nas normas aplicáveis ao caso.
Isto significa dizer que o impetrante, primeiro colocado entre os deficientes físicos, deve ocupar uma das vagas ofertadas ao cargo de Analista Judiciário – especialidade Odontologia, para que seja efetivada a vontade insculpida no art. 37, § 2º do Decreto nº 3.298/99. Entenda-se que não se pode considerar que as primeiras vagas se destinam a candidatos não-deficientes e apenas as eventuais ou últimas a candidatos deficientes. Ao contrário, o que deve ser feito é a nomeação alternada de um e outro, até que seja alcançado o percentual limítrofe de vagas oferecidas pelo Edital a esses últimos.”
Com a devida vênia, creio um argumento deve ser levado em consideração. Qualquer aprovado em concurso público não tem direito adquirido à nomeação em cargo público. Existe apenas expectativa de direito, isto é, “a mera possibilidade de sua aquisição” [05], conforme reiteradamente a mesma egrégia Corte vem sustentando em seus decisórios:
“A aprovação e classificação em concurso não confere o direito à posse no cargo, gerando apenas uma expectativa de sua concretização.” [06]
“Esta Corte firmou entendimento de que, em tema de mandado de segurança impetrado contra atos que regem concursos públicos, não há necessidade de serem citados os demais candidatos aprovados, visto que estes detêm mera expectativa de direito de serem nomeados.” [07]
“O candidato possui mera expectativa de direito à nomeação imediata, ato do juízo de conveniência e oportunidade da Administração Pública, respeitadas a necessidade do serviço, o número de vagas existentes e a ordem classificatória dos aprovados no concurso.” [08]
“Embora aprovado em concurso público, tem o candidato mera expectativa de direito à nomeação. Precedentes.” [09]
Veja como a situação é diferente. Quando há número de vagas superior a uma e há uma lista com vários deficientes, aí sim podemos visualizar esse preenchimento alternado. Mas no caso do Francisco, como não há número suficiente de vagas abertas, não se aplica o raciocínio. O raciocínio do preenchimento alternado das listas faz sentido quando há um número de vagas suficientes para que isso seja feito, respeitando-se os direitos dosdeficientes. Mas se torna extremamente equivocado quando não há um número de vagas suficiente abertas de plano pelo edital do concurso. Afinal, as disposições legais asseguram um percentual de vagas para o qual os portadores de deficiência irão concorrer, e não que eles serão necessariamente nomeados em cargos públicos. É aqui que entra a expectativa de direito. A meu modo de entender, procedendo dessa forma, há uma transmudação de uma expectativa de direito em direito adquirido, desrespeitando o mérito do ato administrativo. Quando não há um número suficiente de vagas, o portador de deficiência deve esperar para que seja aberto um número suficiente de vagaspara que os dispositivos legais sejam respeitados e, a partir daí, pode ser feita o preenchimento alternado das vagas. É assim que ocorre, por exemplo, quando os candidatos são classificados fora do número de vagas disposto no edital. Afinal, se os outros tem apenas expectativa de direito, porque os deficientes têm direito adquirido?
Além do mais, mesmo que seja feito como o preconizado pela jurisprudência do STJ, não há garantia de que serão abertas novas vagas e, assim sejam respeitados os limites legais.
Notas
01 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 215-216.
02 TRF 1ª região – AMS 2003.01.00.037201-0 – Minas Gerais – Quinta Turma – Relator Desembargador João Batista Moreira – DJ 25/11/2004 – p. 41.
03 TRF 1ª região – AC 2002.33.00.008292-2 – Bahia – Sexta Turma – Relator Desembargador Souza Prudente – DJ 10/05/2004 – p. 154.
04 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 24. No caso em questão, estamos falando do “legislador” constitucional.
05 GALIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. v. I. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 300.
06 STJ – RMS 16127 – Maranhão – Sexta Turma – Rel. Min. Paulo Gallotti – DJU 24/04/2006 – p. 464.
07 STJ – AGA 492852 – Sergipe – Sexta Turma – Rel. Min. Paulo Gallotti – DJU 08/05/2006 – p. 302.
08 STJ – MS 8923 – Distrito Federal – Terceira Seção – Rel. Min. Paulo Gallotti – DJU 24/04/2006 – p. 345.
09 STJ – RMS 16576 – Mandado de Segurança – Quinta Turma – Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima – DJU 05/12/2005 – p. 338.